Por décadas, frases atribuídas a Peter Drucker moldaram a mentalidade de líderes e executivos ao redor do mundo.
Mas e se boa parte do que repetimos como “sabedoria de gestão” for, na verdade, um equívoco histórico?
Duas expressões se tornaram mantras quase sagrados no mundo corporativo:
- “O que não é medido, não é gerenciado.”
- “A cultura come a estratégia no café da manhã.”
Ocorre que nenhuma delas foi dita por Drucker.
E compreender por que essas frases se espalharam e o que ele realmente quis dizer é um passo essencial para resgatar o verdadeiro sentido de liderança e estratégia nas organizações.
O mito da medição: quando o alerta virou dogma
A ideia de que “o que não é medido não é gerenciado”
não nasceu com Drucker, mas com V. F. Ridgway, em 1956.
E o mais surpreendente é que Ridgway não estava fazendo uma recomendação. Ele estava emitindo um alerta.
Em seu artigo “Dysfunctional Consequences of Performance Measurements”, Ridgway escreveu (tradução livre):
“O que é medido é gerenciado — mesmo quando não faz sentido medi-lo e gerenciá-lo, e mesmo que isso prejudique o propósito da organização.”
Ou seja, o autor alertava que sistemas de medição, quando mal utilizados, podem distorcer o comportamento e desviar o foco do propósito organizacional. Porém, com o tempo, o trecho foi simplificado, descontextualizado e transformado em mantra:
“O que é medido é gerenciado.”
E o mercado corporativo (e de consultorias), ávido por fórmulas fáceis, abraçou a simplificação.
A transformação do alerta em “religião corporativa”
Na década de 1980, com a ascensão de sistemas como SAP e Oracle, medir se tornou sinônimo de profissionalismo.
As grandes consultorias (McKinsey à frente) perceberam que havia ouro ali. Mas precisavam de um selo de autoridade.
Foi então que surgiu a genialidade perversa: atribuir a frase a Peter Drucker. Afinal, quem ousaria contestar Drucker?
Assim, nasceu o slogan comercial mais poderoso da gestão moderna:
“Se você não pode medir, você não pode gerenciar.”
Simples e vendedor, mas completamente contrário ao pensamento original de Drucker.
O que Drucker realmente defendia
Em “The Effective Executive” (1967), Drucker escreveu algo quase oposto:
“Quando algo pode ser capturado em números, já é tarde demais.”
Sua preocupação não era com a ausência de mensuração, mas com o perigo de usar números como substitutos do pensamento.
Para Drucker, a essência da gestão está em perceber oportunidades, padrões e sinais fracos antes que virem fatos mensuráveis.
Ele acreditava que líderes eficazes usam percepção, julgamento e discernimento, e não apenas planilhas. Métricas são importantes, sim mas elas registram o passado.
O papel do gestor é imaginar o futuro.
Da mensuração à miopia
A obsessão por métricas gerou um efeito colateral: miopia gerencial. Empresas passaram a medir tudo mas entender pouco.
- Contam horas, mas não energia.
- Medem produtividade, mas não aprendizado.
- Quantificam engajamento, mas não conversas reais.
Essa lógica de controle cria organizações que perseguem indicadores sem propósito. E quando a métrica vira o objetivo, a estratégia morre.
Como dizia Goodhart:
“Quando uma medida se torna uma meta, ela deixa de ser uma boa medida.”
O mito da cultura que “come estratégia”
Outra frase igualmente poderosa (e igualmente falsa) é:
“A cultura come a estratégia no café da manhã.”
Apesar de circular como citação de Drucker, ela nunca apareceu em seus livros ou palestras.
Quem a popularizou foi Mark Fields, ex-presidente da Ford, em uma reunião interna nos anos 2000. Fields usou a frase para enfatizar que, mesmo com boas estratégias, a cultura organizacional é o que determina a execução real.
E, para dar força à mensagem, atribuiu a frase a Drucker.
O resto é história.
O que Drucker realmente dizia sobre cultura e estratégia
Drucker não via cultura e estratégia como opostos. Pelo contrário! Ele via um sistema interdependente entre estratégia, estrutura e cultura. Ele argumentava que:
- Uma estratégia precisa se adequar à cultura existente, ou
- A liderança precisa mudar a cultura para que a nova estratégia possa florescer.
Em essência:
A cultura não devora a estratégia. Mas pode digeri-la mal se ela não for bem preparada.
Drucker entendia que a estratégia define o caminho, mas a cultura define se as pessoas caminharão juntas.
Uma não substitui a outra, mas se alimentam mutuamente.
Por que essas distorções se espalharam
Há uma explicação simples e incômoda: frases complexas não vendem. A cultura corporativa moderna valoriza certezas rápidas e frases de efeito.
Consultorias, escolas de negócios e redes sociais corporativas amplificaram versões simplificadas das ideias de grandes pensadores, retirando nuance e adicionando conveniência. É mais fácil vender um curso sobre métricas do que sobre discernimento. É mais fácil vender cultura “como diferencial” do que ensinar líderes a integrá-la à estratégia.
Mas, ao fazer isso, perdemos profundidade e trocamos sabedoria por slogans.
O verdadeiro legado de Drucker
O verdadeiro Drucker não era um evangelista de mensurações e nem um romântico da cultura. Ele era um pensador pragmático, que acreditava que gestão é um ato de responsabilidade e julgamento humano.
Ele sabia que:
- O que pode ser medido nem sempre é o que mais importa.
- E o que mais importa quase nunca cabe em uma planilha.
Por isso, dizia que gestores eficazes são aqueles que pensam com a cabeça e com o caráter que observam, escutam, refletem e decidem com base em propósito, e não apenas em indicadores.
O insight para líderes e organizações hoje
Revisitar Drucker é um convite à lucidez. É perceber que o problema da gestão moderna não é falta de dados, mas é excesso de crenças erradas. A gestão virou refém de suas próprias frases feitas. E o antídoto está em recuperar o pensamento crítico:
- Questionar o que medimos.
- Relembrar por que medimos.
- E garantir que nossas métricas sirvam ao propósito e não o contrário.
Da mesma forma, é hora de abandonar a falsa dicotomia entre cultura e estratégia. A cultura não “come” estratégia! Ela a torna possível. E toda estratégia robusta precisa cuidar da cultura que a sustenta.
Conclusão
Afinal, o que Peter Drucker realmente nos ensinou? Que nem tudo o que conta pode ser medido. E que nenhuma estratégia sobrevive se não se tornar comportamento. No fim das contas, as organizações que prosperam são aquelas que:
- Pensam com profundidade.
- Medem com sabedoria.
- E agem com coerência.
Gestão não é sobre medir o passado. É sobre imaginar e construir o futuro.